top of page
Jéssica Bajarunas

As crônicas de Hell City

O surgimento do primeiro fofoqueiro


Addy era um menininho solitário que sentava-se todos os dias nos degraus da sua escada, na periferia de Hell City. Conforme o tempo foi passando, ele também foi crescendo, porém sem amigos, sem ninguém para brincar

(já sei que você leitor deve estar morrendo de dó e com vontade de carregar Addy no colo, certo? Calma, toda a história tem dois lados)

Então, certo dia, Addy notou que seus amigos eram bem melhores do ele, eles tinham amigos, eram amados pelos pais e tinham talentos especiais. Naquele momento, Addy, não queria mais ter eles como amigos, e sim gostaria de se tornar um deles. E foi assim, que Addy mudou seu jeito de falar, de andar e até mesmo de sorrir, tudo para se tornar como eles. Porém, é humanamente impossível nos tornarmos exatamente igual a outra pessoa.

Assim que Addy se deu conta disso, ficou frustrado e aborrecido. Ele não poderia nunca ser eles. Então, na vida adulta enquanto os seus colegas trabalhavam e faziam faculdade, Addy continuava sentado no mesmo degrau cobiçando a vida que não tinha. Não demorou muito para criar um plano perfeito e maldoso.

Começou no início com Dona Adelaide, que passava os dias varrendo a calçada, mesmo quando não tinha nenhuma folha, apenas como desculpa para observar a vida alheia. Addy aproximou-se dela e contou a primeira mentira sobre um dos garotos, com o propósito de causar intrigas e discórdias.

Ela ficou pasma, levou a mão na boca e balançou a cabeça tentando não acreditar no que ouvira. E assim, após fazer a primeira vítima, ele havia descoberto algo em que realmente era bom, que tinha "talento": Mentir.

A mentira se tornou recorrente e cada vez mais era mais emocionante e cheia de detalhes sórdidos da vida alheia. E ele estava ficando bom, na verdade, um verdadeiro profissional na área. Certa vez, até provocou uma briga entre duas vizinhas que pareceriam ser amigas há anos, tudo por causa de uma fofoca bem elaborada.

A vida foi acontecendo, alguns dos seus vizinhos se mudaram, a maioria dos jovens da sua idade se casaram e mudaram-se de cidade. A periferia de Hell City foi ficando mais solitária e ele também. Ninguém queria estar com ele, um motivo era claro, ele era extremamente baixo, a caricatura perfeita da "polegarzinha" na versão masculina, além disso ele possuía duas "entradas" no cabelo que formavam o desenho perfeito de dois chifres. Era horrível. Mas a pior parte de tudo, além de sua aparência esquisita era a reputação que ele havia construído durante todos os anos. Havia mentido para duas namoradas ao mesmo tempo. Era um "galinha" na versão brega.

É, mas a velhice chega para todos, e um dia a vida fútil de bandinhas e boates acaba, vamos precisar estar com alguém e esse mesmo sentimento perturbou Addy por muito tempo, até encontrar uma moça tão pequena quanto ele, formavam até um casal "tampa e caldeirão", mas Addy não estava contente. Olhava a grama do vizinho e a achava mais verde, olhava o carro do outro vizinho e achava mais novo. Queixava-se o tempo todo! Era um vício, assim como a bebida é para o bêbado.

A palavra contentamento desapareceu do seu vocabulário, e sua esposa, era atormentada diariamente pela onda de reclamação que vinha da sua boca. Era um inferno para a coitada.

Em uma manhã de outono , ela o deixou. Saiu até mesmo no jornal de Hell City, um depoimento da moça contando como o ex-marido era um louco, um mentiroso. Como a moça descrevia " era alguém que precisava de tratamento, nunca estava contente com nada".

A fama de Addy só piorava a cada dia, e ainda mais com o divórcio!

Ele novamente estava sozinho na sua varanda alugada, cobiçando a varanda do vizinho da frente. Sem dúvida, aquela varanda era muito mais arejada, na mente dele, era perfeita.

Na velhice solitária, a cidade foi ficando cada vez mais vazia, afinal ninguém aguenta uma cidade do interior por muito tempo. Não havia mais vizinhos, a rua era toda dele. Era deserta e só se ouvia o sopro do vento batendo nas janelas e provocando músicas tristes.

Aos oitenta anos, Addy, não queria mais sair de casa, dizia sozinho em um monólogo dramático, sim ele falava sozinho e fazia gestos para o ar, para as paredes ou para sei lá o que ele imaginava na sua minúscula cabecinha de alfinete.

Dizia em seu monólogo que os pássaros tinham mais sorte que ele, se jogava no chão, esticava bem os braços para cima, para o lado e fazia grandes gestos, abria bem a boca para pronunciar bem todas as palavras em tom dramático, como se estivesse em um palco com uma grande platéia, mas a realidade era que ele estava sozinho.

Nesse momento até os insetos se escondiam, com medo da sua loucura. A rua se tornava silenciosa, nem os passarinhos queriam cantar. Ficavam acuados e trocavam olhares entre eles, como se o som da voz de Addy fosse o início do Apocalipse.

Certo dia, tomado pela loucura ele decidiu ficar horas sentado em uma cadeira de balanço olhando para o seu reflexo no espelho. Era assim todos os dias, um silêncio. A mesma rotina do amanhecer ao anoitecer. Levava uma vida mais vazia do que nunca, não tinha mais objetivo, afinal tudo o que ele sabia fazer era fofocar, e agora que isso não era mais possível ele estava completamente perdido, delirando, talvez até louco.

Certa manhã, ele olhou fixamente para o espelho, para o seu reflexo e disse:

— Estou com inveja, como você pode ficar trancado ai todos os dias?

Obviamente não houve resposta, na verdade seria aterrorizante se houvesse alguma. Mas na mente perturbada de um fofoqueiro frustrado e solitário, certamente haveria alguma resposta vinda do espelho.

—Não vou sair daqui, até você me responder! — disse cruzando os braços e encarando o próprio reflexo inanimado.

Tristemente, leitor, você deve imaginar o que aconteceu: Não houve resposta. Nem naquele dia, nem no outro , nem nunca! Era impossível!

Não havia mais ninguém que ele pudesse falar mal, não havia novas vidas para cuidar. Então no ápice da loucura, Addy permaneceu alí, naquela cadeira velha encarando o próprio reflexo, esperando por uma resposta, por um entendimento que jamais viria.

Vieram novos outonos e primaveras e Addy foi consumido pela ação do tempo, ou por falta de cuidados com o próprio corpo, ou seja qual for o motivo!

Apenas sabemos que o esqueleto frio e sem vida de Addy está no mesmo local até hoje. Em uma cadeira velha de frente para um espelho enferrujado e sujo. Os pássaros, usam seus braços como apoio, os insetos se instalam nele como abrigo do frio.

Seus hábitos nocivos, sua obsessão pela vida alheia, por boatos e seu coração corrupto já vinham se definhando há anos, mas quando a sua mente decidiu se envenenar com a maldade que ele semeou e regou, bom ai ele finalmente deixou de existir.

Ninguém nasce ruim, mas muitas vezes as pessoas se perdem em seus desejos egoístas a ponto de dar a si mesmas suas próprias sentenças!.


bottom of page